Hécate tem sido considerada uma Deusa da magia, da escuridão e da sempre inescrutável encruzilhada, ocupando talvez um dos mais devotos cultos de adoração entre as Deusas nos tempos modernos. Apesar da sua natureza tenebrosa e sombria, ela continua a ser amada e respeitada por muitos praticantes das artes mágicas em todo o mundo. Há milénios que ela é também um símbolo do culto pagão como um todo.
Como Deusa da Magia, Hécate derrotou o temível gigante Clítio durante a Titanomaquia, que tinha absorvido toda a Magia e a tinha tornado ineficaz. Ao incendiar o cabelo dele com tochas (uma alegoria para a abertura dos Chakras Superiores), ela restabeleceu o uso das artes sagradas e o desenvolvimento da alma para os seres superiores. Zeus concedeu-lhe assim a capacidade eterna de governar o que era invisível e oculto.
Hécate foi fortemente associada a Artemis, acima de todas as outras figuras, como sua companheira e serva. A Deusa era representativa de ser a ponte e o elo de ligação com a alma pura inconsciente que Ártemis governa. Este papel está profundamente refletido no seu nome, “a trabalhadora de longe”, que é uma forma feminina de um título que Apolo também possui.
Uma das funções mais importantes de Hécate é o facto de ser uma Deusa do Tempo e do Espaço. A entrada e a saída são condicionadas por ela: é por isso que ela era a padroeira divina das muralhas das cidades, dos limiares e dos limites dos santuários. A magia e os seus resultados são também codificados na realidade pelo seu comando através do mesmo princípio, uma vez que têm de ser introduzidos no mundo através de meios invisíveis e únicos. Ao governar o Tempo e o Espaço, ela pode ser vista como uma contraparte feminina de Khepri — mas, em grande medida, também o seu oposto.
É também uma Deusa da alimentação: tal como Lilith e Afrodite, vem em auxílio das crianças e, tal como Agares, serve as pessoas comuns.
Marcador de estrada bizantino para Hécate
O seu local de culto comum era a encruzilhada ou trivium, onde Hécate era adorada juntamente com os espíritos dos mortos. As tábuas de maldição e as oferendas eram frequentemente depositadas como presentes para a Deusa. Estas estradas simbolizavam a necessidade de recuar para refazer os seus passos e a contemplação cuidadosa do que fazer, tanto na vida como na morte. O trivium tem também um significado relacionado com a magia e os resultados de uma decisão: há sempre dois caminhos à vista depois de um viajante ter percorrido um caminho.
A ambiguidade da encruzilhada reflecte as voltas e reviravoltas da vida, a incerteza quanto ao caminho a seguir e a importância de refazer os movimentos. A liminaridade e os limites eram considerados factores importantes no seu simbolismo. Ocasionalmente, Hécate também era associada ao quadrivium — ou encruzilhada de quatro vias — o que representava uma alegoria adicional de ir e voltar através da evolução, com uma ambiguidade ainda maior.
A Deusa era conhecida por habitar com as almas dos mortos como seu guia e por ter espíritos acompanhantes. Lares e Manes (espíritos dos mortos) eram honrados em compita (santuários de encruzilhada). As encruzilhadas eram zonas rituais para oferendas às divindades do submundo, especialmente durante os festivais da Parentalia ou da Lemuria. Na Mesopotâmia, šiptu ou šēlu operavam em espaços liminares — portões da cidade, bordas de cemitérios ou encruzilhadas — vistos como pontos de contato com o submundo. Alguns dos conceitos de Hécate na mitologia eram contraditórios, muitas vezes deliberadamente assim. Era tida como malcheirosa, apodrecida e meio-morta, mas também como a Deusa mais imaculada, limpa e meticulosa na sua abordagem à manutenção, chegando mesmo a ostentar o epíteto de “a de cabelos brilhantes”, o que ironicamente reflecte em parte a sua imolação de Clítio através do cabelo dele. Todos estes símbolos reflectem o seu estatuto de Deusa da Purificação e a sua eterna associação ao Esbat e aos ciclos da Lua — uma altura auspiciosa para iniciar rotinas de limpeza. Isto também se relaciona com a recriação do eu através da ativação da glândula pineal.
Nas fontes clássicas, Hécate também estava associada à raiva, reflectida num dos seus nomes,
Vrimo (Enfurecida). Quando Hermes tentou violá-la (uma alegoria sobre levar processos invisíveis longe demais pela mente tátil, excessivamente ambiciosa e nervosa), ela bufou tão violentamente que ele fugiu, fazendo-o voltar a si.
Hécate com Hermes
A sua fúria estava também relacionada com a preservação da limpeza, mesmo à custa do embaraço e do escrutínio dos outros. Nesta medida, estava também associada à vingança e à magia negra. A este respeito, ela codifica muitos dos decretos de Lilith, Afrodite e Apolo.
O principal centro de culto de Hécate situava-se em Lagina, na Ásia Menor, fortemente influenciado pela representação cariana dela como a Deusa do Sol chamada Arinna. O seu culto era considerado particularmente importante para os habitantes da costa da Ásia Menor e era o foco de várias festividades. Por exemplo, coros de rapazes eram treinados para cantar os seus louvores em vários ciclos lunares. Um dos aspectos destes rituais incluía uma cerimónia de “transporte da chave”, em que um coro de jovens meninas caminhava de Lagina até à poderosa cidade-estado de Stratonicea para declarar a sua devoção. No regresso, os portões eram abertos pela menina que transportava a chave (o kleidophoros), e as festividades religiosas começavam. Este ritual não só servia como um lembrete político de que Stratonicea controlava Lagina, mas também que Hécate controlava as chaves do submundo.
A notória cidade de Bizâncio tinha Hécate como sua Deusa padroeira, acreditando que ela desorientou o progresso de múltiplas invasões. Dizia-se que as suas visões protegiam a cidade que se estendia por dois continentes, como se ambos os lados do Helesponto fossem as suas tochas. Mais tarde, fontes romanas personificaram Hécate como a chave para a própria Ásia:
Εἰνοδίην Ἑκάτην κλήιζω τριοδίτιν ἐρανννήν,
οὐρανίην χθονίην τε καὶ εἰναλίην κροκόπεπλον,
τυμβιδίην, ψυχαῖς νεκύων μετά βακχεύουσαν . . . . . ἀγαλλομένην ἐλάφοισιν,
ταυροπρόσωπον, παντὸς κόσμου κλειδοῦχον ἄνασσαν,
ἡγεμόνη νύμφην κουροτρόφον οὐρσιφοῖτιν.
Eu invoco Hécate das encruzilhadas, adorável,
celestial, terrena e marinha, vestida de açafrão, assombradora dos túmulos,
regozijando-se entre as almas dos mortos... regozijando-se em veados,
com cara de touro, rainha que detém as chaves de todo o cosmos,
líder, ninfa, nutridora de jovens, andarilha da montanha.
-Hino Órfico a Hécate
Há uma variedade de conceitos triplos a que Hécate está associada, dos quais apenas alguns são: conceção, planeamento e execução; terra, céu e mar; homem, mulher e união; a Lua Nova, a Lua crescente e a Lua minguante; e, mais importante, criação, destruição e manutenção. Os três nós da alma também são movidos parcialmente apenas por seu comando.
SIMBOLISMO
Hécate possui um conjunto extremamente variado e elaborado de símbolos. Ela tem três corpos, por vezes com cada iteração a mostrar emoções diferentes. A imagem trina que ela transmite contém códigos sobre o universo. Em primeiro lugar, culturalmente e numerologicamente, o número três é o número mágico.
Hécate Chiaramonti, cópia romana do original grego
Uma das coisas que evoca é o trimestre da gravidez nas mulheres e os três principais componentes do útero. Antes das modernas técnicas de imagem, a conceção de um bebé era misteriosa e pouco compreendida. Para as mulheres que procuravam conceber, Hécate era consultada e fortemente associada à Deusa do parto, Eileithyia. Os trimestres do desenvolvimento fetal também se relacionam com uma alegoria mais alargada da evolução humana. Um dos símbolos com que ela é fortemente equiparada é o triskelion em espiral e, por extensão, o triângulo equilátero. Para o triskelion (também um símbolo de Thoth no seu sentido mais ativo), isto foi equiparado à sua capacidade de destruir, criar e manter. Estava também associada ao 666, relacionado com o conhecimento do eu superior, e ao ângulo de 60 graus.
Imagem do triângulo equilátero de Hécate
Tal como Abraxas, Hécate era conhecida por possuir chaves, o que se reflecte num dos seus títulos, Kleidophoros (aproximadamente “Mantenedora da Chave”). Essas chaves continham a receita designada para praticar Magia com sucesso, mas também a chave para se desenvolver como um ser mais forte e para a zona de fronteira do próprio submundo.
Hécate com cão, Museu da Universidade de Tübingen
Os cães leais aos seus donos, em particular as cadelas, são um símbolo de Hécate, que Eurípides descreve como um animal sagrado dela. As cadelas podem ser erráticas, emocionalmente sensíveis e independentes, com uma tendência territorial em relação a outros canídeos. No entanto, existe um lado mais doce e contemplativo nelas em comparação com os seus homólogos masculinos geralmente turbulentos, relacionado com a sensibilidade psíquica dos cães.
O seu ciclo de cio consiste em proestro, cio e diestro. Como uma extensão dos conceitos de maternidade acima referidos, as cadelas também cuidam meticulosamente das suas crias, que são extremamente dependentes da mãe e necessitam de um ambiente tranquilo para se desenvolverem.
A fidelidade dos cães também encontra eco no mito canino. Lycophron afirma que o cão que seguia Hécate era a Rainha Hécuba de Troia, que se tinha atirado ao mar em desespero depois de ver os corpos dos seus filhos e que foi transformada num familiar devido à estima de Hécate pela sua lealdade. Tal como com Anúbis e Kérbero, o simbolismo do cão sugeria uma fidelidade à própria vida. Hécate é frequentemente retratada ao lado de Kérbero, e um dos significados das chaves que ela segura é sinalizar uma passagem segura sem ser atacada por ele.
Os outros animais importantes que estavam constantemente ao seu lado eram as doninhas europeias, antepassados dos furões actuais. As doninhas perfuram os crânios de outros animais e deixam-nos, ainda vivos, nas suas tocas para consumo. São também ocupantes silenciosos e habituais das tocas de outros animais, sendo conhecidos como uma das piores pragas imagináveis para os agricultores, devido à sua furtividade. Estes animais excretam também um líquido malcheiroso para delimitar o seu território.
A doninhas são também animais com visão de longo alcance, com uma visão e uma capacidade de olfato excepcionais. Devido a estes comportamentos, eram considerados animais atenciosos, mas maliciosos, com uma compreensão adequada do passado e do futuro — assistentes adequados para a Deusa do Tempo, que poderia dar melhor uso aos seus poderes.
Outro animal importante é o leão, que serve de companheiro para Hécate em contextos profundamente ocultos, e a serpente, que é frequentemente representada a crescer do seu antebraço ou mesmo da sua cabeça.
Nos vasos e na estatuária, Hécate era normalmente representada com duas tochas e, por vezes, com um simbolismo dualista. Estas tochas representam a ida e a pingala, mas também têm um significado sutil de encontrar pacientemente o caminho através do labirinto da civilização, ilusões e distracções para chegar ao autêntico eu superior. Agarrar as duas tochas requer equilíbrio: a distração e o descuido levam a que as tochas se apaguem e a que nos percamos na escuridão.
No Tarot, Hécate está associada à carta da Lua, juntamente com Lilith e Afrodite [Ártemis]. Durante muito tempo, a carta da Lua foi representada como dois cães a ladrar para a Lua entre duas torres e uma estrada, com uma lagosta a emergir da água em primeiro plano. As representações anteriores mostravam dois homens com bússolas a gesticular para a Lua, ou Artemis sozinha.
Baralho Estensi, recriação moderna, Giordano Berti e Jo Dworkin
HECATE E O INIMIGO
Na Bíblia, Hécate é representada como a Bruxa de Endor. Em hebraico, ela é elaborada como o ‘ob (Luz) de En Dor. Esta terminologia do ‘ob tem ligações na Cabala ao simbolismo dos insectos, sugerindo a sinergia de poderes que partilha com Khepri (note-se a conexão com o ‘ib egípcio, ou amuleto do coração, associado a Khepri). Os insectos estão também associados na literatura judaica a falsas profecias.
Há muito que o rei judeu Saul tinha decretado a morte de todos os adivinhos do reino israelita. No entanto, num momento de desespero após a morte de Samuel, decidiu consultar uma bruxa conhecida pelos seus poderes de comunhão com os espíritos, que permanecia em Endor, uma vez que a entidade YHVH não tinha respondido a nenhuma das suas súplicas.
A feiticeira convoca o espírito de Samuel, que repreende Saul (Samuel também repreende os israelitas por terem praticado adivinhação em vida) e afirma que ele e seus filhos morrerão em breve por terem desobedecido à ordem da chamada divindade judaica de destruir os amalequitas ou povos gentios (1 Samuel 28:18). A morte predita concretiza-se, pois Saul é derrotado pelos filisteus numa batalha.
Esta parte da Bíblia está relacionada com as ordens dadas aos judeus para nunca consultarem adivinhos gentios ou mostrarem simpatia pelos povos gentios. Se o fizerem, garantem a destruição de Israel. Metaforicamente, transmite também o significado da encruzilhada da escolha certa, de que Saul é vítima. Alguns académicos judeus modernos consideram que o texto tem um significado necromântico relacionado com o antigo simbolismo do trivium.
A tradução grega também torna este facto explícito: na Septuaginta, a bruxa é chamada ἐγγαστρίμυθος (faladora do ventre), um título para os médiuns no mundo clássico.
HÉCATE E O CRISTIANISMO
Hécate aparece numa grande variedade de escritos cristãos que denunciam a sua adoração — e a adoração do trivium — como extremamente perigosa e maligna. Audoin, no século VII, adverte contra a colocação de objectos votivos, enquanto as fontes bizantinas indicam esforços para acabar com o seu culto, ainda no século XI, nas encruzilhadas da Grécia. Foi também difamada devido à sua estreita associação com Afrodite, sob a forma de Ártemis. Consequentemente, continuou a ser uma das Deusas pagãs mais famosas durante a época medieval.
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Demónios' com chaves, Harley MS 1526 f.4v
À medida que Lilith era denunciada mais exclusivamente pelos judeus nos seus círculos, e o culto público de Afrodite era demolido — enquanto outras Deusas eram associadas a símbolos como os gatos — Hécate funcionava como uma iconografia visível, de corpo humano, para as Deusas em geral, em parte devido ao seu retrato ambíguo nas obras gregas e romanas sobreviventes. O imaginário cristão retratou-a como a padroeira de todas as bruxas e da missa negra.
Uma das suas representações mais famosas é a de Macbeth, para a qual contribuíram tanto o dramaturgo Shakespeare como o mestre Bacon. Os dois escritores foram influenciados por um recente tratado religioso (Daemonologie) do rei James. Ele escreveu um tratado puritano sobre a Bruxa de Endor, declarando o seu medo das forças demoníacas e das bruxas, afirmando que a magia era absolutamente real — e que a interpretação de muitos protestantes contemporâneos que afirmavam que não era, era incorrecta.
As Irmãs Weyward (vulgarmente conhecidas como as Três Bruxas) funcionam como servas de Hécate, trazendo visões ao malvado Macbeth e ao malfadado Banquo. Falam de forma incisiva, em analogia com os atributos contraditórios da Deusa:
O que é justo é injusto, e o que é injusto é justo...
—
Macbeth, Shakespeare
Embora a peça retrate Hécate como uma força, mostra-a corretamente a repreender as Irmãs por brincarem com Macbeth para seu próprio divertimento. Furiosa, promete empurrar Macbeth para o seu destino com as suas armas e desígnios. No final, Macbeth tem uma visão dos filhos e da mulher de Macduff assassinados sob as suas ordens, antes de ele próprio ser abatido. Os escritores retrataram cuidadosamente Hécate, não apenas como uma mera utilizadora de magia com o objetivo de provocar o caos, mas com o objetivo de expulsar o mal — contradizendo subtilmente a perspetiva jacobina:
Ele desprezará o destino, desprezará a morte, e suportará
As suas esperanças acima da sabedoria, da graça e do medo.
E todos vós sabeis, a segurança
É o maior inimigo dos mortais.
- Discurso de Hécate, Macbeth, Shakespeare
Hécate é também mencionada em Sonho de uma Noite de Verão, e Rei Lear.
Um tipo peculiar de testemunho moderno da influência de Hécate aparece em muitos filmes de terror ou nos meios de comunicação do género sobrevivência — muitas vezes na personificação da ‘última moça’ (“final girl”), talvez começando com Britomart em The Faerie Queene (uma alegoria para Elizabeth I) e Mina Harker no romance Drácula de Bram Stoker. Estas meninas e mulheres nessas entretenimentos têm de usar as suas mentes e capacidades de observação — por vezes, os poderes da magia — para enganar um homem assassino que as persegue ou para sobreviver num ambiente perigoso que ameaça cair sobre elas. Muitos destes temas também se sobrepõem aos julgamentos mitológicos de Psique, uma Deusa relacionada.
BIBLIOGRAFIA
Alexandra, Licófron
Hino Órfico a Hécate
A Deusa Hekate Chthonios, Stephen Ronan
Hekate Soteira, Sarah Iles Johnston
Macbeth, William Shakespeare, Francis Bacon
CRÉDITO:
[GT] Karnonnos
[GT] Powerofjustice — edição de gramática/palavras